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semprenobre

O meu avô

Atualizado: 22 de ago.




O meu avô enrolava as tardes quentes e lânguidas daquele alentejo - o dele ou o meu? - no seu cigarro. Provavelmente, tê-lo-ei visto repetir o mesmo ritual dezenas de vezes, mas apenas me lembro de uma em particular, ou então a que me lembro não é mais do que a soma de tantas outras vezes em que o fez. Estávamos sentados no quintal, talvez o meu avô estivesse sentado num pedaço de tronco, que servia de banco improvisado e eu no pequeno muro caiado do canteiro da avó, muito baixinho e branco, ou talvez fosse o oposto, e eu é que estivesse sentado nesse resto de árvore. De certa forma, é curioso notar como a memória parece ondular dentro de mim, à medida que vou puxando por ela. Quanto do que me lembro é genuíno e quanto é fabricado ficará para sempre no segredo do universo.

O meu avô enrolava um cigarro em algumas das pausas entre as nossas atividades. Podia ter sido após me contar uma das suas fábulas inventadas na hora, um pequeno jogo de futebol com aquelas bolas de plástico, muito comuns na praia, cheias de cores, ou depois dum jogo à bisca dos três, em que genuinamente se chateava quando o moço dum cabrão ganhava, o que me divertia imenso, e me fazia rir até às lágrimas. Eu não teria mais do que dez anos, e agora percebo por que observava tão atentamente os seus gestos demorados, espalhar o tabaco, acondicioná-lo devidamente junto do filtro (ou fumaria sem filtro?), antes de o amortalhar e selar o processo com a ponta da língua, agora entendo que era aí que se definia uma fissura entre nós. O meu avô estava a fazer algo apenas reservado às pessoas mais velhas. Por muito que eu quisesse imitá-lo, sabia que não me era permitido. Terei percebido que o facto do meu avô fazer aquilo e eu não, o aproximava mais da morte? Provavelmente não. O que sabe um menino de dez anos sobre a morte, afinal? E de que forma o seu conhecimento da morte pode ser diferente do de um ancião?

A minha avó chateava-se com o meu avô e, eventualmente, ele deixou de fumar. Uma parte de mim ficou triste por isso. Primeiro, porque gostava de observá-lo a fabricar o seu cigarro e segundo, porque sei que o meu avô retirava prazer desse seu pequeno vício. Não sei quanto tempo depois lhe foi diagnosticado o cancro no estômago. Não sei quanto tempo depois morreu, pouco mais que pele, ossos e dores excruciantes. Eu tinha catorze anos.

Hoje, fumo de vez em quando um cigarro de enrolar. Mas não creio que sinta a magia durante o processo de preparar o cigarro que me lembro de sentir em criança, fitando o meu avô. Hoje posso fumar os cigarros que desejar, ninguém ficará chocado por isso. Já tenho mais que idade, e também já estou mais próximo da morte. O quintal da casa dos meus avós continua lá, mas já não é o quintal da casa dos meus avós. É assim, eu entendo, as coisas mudam. Hoje, os meus pais já não têm pais. Conheci-os a todos e todos seguiram já viagem. Resta-nos essas migalhas de eternidade, que é lembrarmo-nos deles, enquanto alguém se lembrar de nós.

O meu avô chamava-se António Nobre, tinha olhos azuis, e foi o melhor avô do mundo. A criança que fui levá-lo-á sempre com ela, enquanto o adulto que sou por aqui andar.

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Leandro Leite
Leandro Leite
21 ago

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